Se há um ano atrás vos escrevia mais cedo e sobre a rentrée, desta vez volto ao ataque, depois de quase dois meses de meditação, para vos dirigir algumas palavras, agora já em pleno Outono.
E adianto o assunto: é sobre algo que acontece por esta altura, normalmente, e que é bastante apreciado por muito e odiado por outros. Bem mais esclarecidos, aposto eu, prossigo em tom melancólico e ritmado para vos confirmar que vamos falar da chuva.
Este fenómeno natural, enviado por entidades superiores, tema de canções e dono de rituais, que incluem dançar de forma estranha, desencadeia nos humanos sentimentos não menos estranhos do que dançar com os braços a abanar e bateres de pé sem música electrónica. É que, mais do que nos fazer ir buscar as galochas e os guarda-chuvas, a chuva é um hipnotismo climatérico que nos faz agir por impulso. Ora pensem lá bem quantas vezes ouviram amigos, colegas de trabalho, familiares, ou meros desconhecidos, a dizer que a chuva dá sono (e que, por isso, gostam de dormir com o barulho da chuva a cair), que têm medo da chuva, que a chuva lhes deixa o cabelo em alvoroço, os constipa, os deixa tristes, românticos ou moles. Imensas vezes, com certeza.
Nos filmes, quando os casais discutem para fazerem as pazes minutos mais à frente, há sempre um dilúvio que lhes agarra os fatos ao corpo e lhes põe as franjas dos cabelos a fazer de caleiras. Nos de terror, a mesma coisa, mas com pessoas a fugir de carro, debaixo de um dilúvio semelhante. Nas tramas históricas, chovia sempre nas últimas batalhas, ou imediatamente a seguir. Noutros, de rir, há cenas que imitam o drama, com chuva à mistura.
Por causa destas cenas cinematográficas, há horrores de pessoas que sempre sonharam beijar alguém à chuva, ou simplesmente mandá-lo à fava no mesmo cenário, apenas e só pela carga emocional associada. Dias de sol são bons para beber cerveja, dias de neve para brincadeiras afoitas, dias de geada para ficar em casa. Dias de chuva são para o que nós quisermos. Pensem nisso nos meses que aí vêm.
A chuva lava, apaga fogos, rega culturas. Mas a mesma água pode levar muros, alagar estradas e moradias, levar barcos para longe, para onde nunca mais voltem, sem amarras. A chuva é um cenário criado naturalmente, mas somos incapazes de a encarar como meras gotas descondensadas, a sair de nuvens cinzentas. E, de todas as coisas que poderia destacar nesta estação do ano, digam lá se a chuva não era a mais límpida e transparente da qual vos poderia falar?
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
Conversas de café, que servem de inspiração para inflamar devaneios. Para acompanhar em directo no informativo digital Notícias do Nordeste, e em diferido, aqui. Em breve, formato livro disponível.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
Diário de um ressabiado
Passam dias, meses, anos.
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.
Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus!
Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez em que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados.
E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.
Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos.
É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais.
Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.
É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor.
E, para quê?
“Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”
Publicado originalmente em http://www.noticiasdonordeste.pt/2015/10/diario-de-um-ressabiado.html
Passam, ou, pelo menos, irão passar. É que se calhar só passaram umas horas, e estamos a insuflar tudo. Não sabemos ao certo o que pensar, e todos os pensamentos são, ainda que ao de leve, homicidas.
Passam dias, meses, anos. Séculos! Milénios, por Deus!
Ou não. Talvez tenha passado menos de um minutos desde a última vez em que pensámos sobre o assunto corrosivo. É o tal assunto, o tal que nos tem trazido ressabiados.
E pensámos, falámos com amigos. Pensamos mais um pouco. Passam dias, meses, anos. Não, que disparate! Passaram apenas 30 segundos, e voltamos a pensar. Na resposta, não há nada. Nem queremos já, em boa verdade. Neste ponto nós somos mais nós, e vamos mandar abaixo de Braga quem disser o contrário. Peito à bala! Estamos por tudo! Ai, agora? Agora não dá.
Anda o relógio, e passam mais dias, mais meses, mais anos. Assim parece, só que, sabemos bem, é mentira. Não se passa nada, em abono da verdade. C’um mil diabos! É que, literalmente, não se passa nada. E devia passar, porque assim íamos ficar menos agastados, íamos ter mais tópicos para juntar à lista que nos traz ressentidos.
É nesta parte que começamos a citar frases. As frases, bonitas e com todo o sentido, só que não foram escritas por nós. Saramago destaca-se na lista: “Se tens um coração de ferro, bom proveito. (…).“E eu estou lá para escrever? Ou para fazer alguma coisa? Só me quero enrolar em posição fetal, e esperar que o mundo acabe”. Sabemos que é coisita para demorar, dado o número de falsos alarmes que há na História. Mas, nunca se sabe quando vai cair um meteorito. E o danado bem que podia cair na cabeça de alguém, e parti-la a meio, como um melão da Vilariça, maduro de mais.
Maduro? Espera lá! Calma aí! É que passaram dias, meses e anos, e nada aconteceu. É fruta podre, é o mal encarnado, é… , olha, nem sei, mas é. E há-de ser.
É que passam dias, meses, anos, sempre a martelar no mesmo! Irra. Falamos com voz arrastada, rosnamos, ficamos de mau-humor.
E, para quê?
“Olha, falar é fácil. Queria ver-te no meu lugar.”
Publicado originalmente em http://www.noticiasdonordeste.pt/2015/10/diario-de-um-ressabiado.html
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
Na rua, pelo amor
“Oque não se espera acontece mais vezes do que o que se espera”, escreveu o dramaturgo Plauto. E tem ele razão.
Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.
Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.
Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que mostra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração.
Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.
Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
Imaginem que ontem estava eu à porta de casa, pronta para ir correr, quando me apercebi de que, antes, necessitava de voltar a subir ao segundo andar. E lá fui eu, galgando escadas duas a duas. Ou seja, em menos de dois minutos (e estou, claramente, a insuflar, dada a minha elevada destreza física), estava de regresso à rua, novamente pronta para correr, à espera da minha companhia.
Mas, o cenário que deixei não foi o mesmo que encontrei. Ali, onde há menos de dois minutos nada existia, tinha acontecido o amor. Sim, leram bem. O amor estava a desenrolar-se perto dos caixotes do lixo. Sei bem que não é um sítio romântico, e tamanha felicidade do casal pode dever-se, por exemplo, ao facto de se terem despojado de um cadáver, que assim se livraram de provas incriminatórias. Ou despejar o lixo dá vontade de dar beijos de línguas e abraços. Ou não, pode dever-se, simplesmente, ao amor.
Sejam os motivos quais forem, a verdade é que o amor demonstrado pelo casal que se beijava encheu a rua. Encheu o olho e o ar, com os falsetes dela e a voz a fingir-se de mau dele, quando inventavam que se chateavam, só para depois de agarrarem de novo aos beijos, e abraços. E foi-se espalhando pela rua, pelos muros das casas, pelos carros estacionados. À medida que se afastavam dos caixotes do lixo, a rua toda ficava impregnada com o cheiro. Não do lixo, mas do amor. Eu achei aquilo fofo – um casal que ignora que o mundo está ali, a coabitar com eles naquele momento, e que se beija, que brinca, que mostra na rua todo o amor que muitos escondem uma vida inteira nos refegos do coração.
Uma autêntica hecatombe aos mal-amados, aos pães sem sal, aos cheios de nove horas. Porque o que não esperamos que aconteça, afinal, acontece frequentemente. Acontece mais do que o que esperamos que aconteça. E o amor aconteceu ali, diante os olhos desta que vos escreve.
Eu não esperava que acontecesse. Mas foi tudo real. Ilações simples? Despejem o lixo mais vezes, ou, pelo menos, depurem regularmente a vossa vida. O amor anda aí, à espera de acontecer. E pode não escolher sítios bonitos ou próprios.
Publicado originalmente em Notícias do Nordeste
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