Como já tive oportunidade de
dizer em outros textos, tenho o dom da coscuvilhice passiva. Este dom
permite-me ouvir conversas de outras pessoas (que, por norma, falam uns
decibéis acima do permito por lei), com as quais me cruzo no quotidiano.
Anos de experiências, de estudos
quase científicos, que me permitem concluir que somos todos demasiado bons uns
para os outros.
Não “bons” de benevolentes, de
querer fazer o bem. Não. O que acontece é que todo o ser humano é um Robocop,
um deus, um mártir ou outro semelhante. Por isso, nunca vamos encontrar alguém
que nos mereça, por sermos tão bons que até dói olhar de frente.
O “vais encontrar alguém que te
mereça” é o novo “não és tu, sou eu”. E esta nova corrente no amor é muito mais
explicativa do que o “não és tu, sou eu”. É uma evolução natural de anos e anos
de tentativas falhadas de terminar airosamente uma relação.
Repare-se que o “não és tu, sou
eu”, deixa muita brechas, muitas arestas afiadinhas. Muitas pessoas viam nessa
frase um gesto não de altruísmo mas de egoísmo, e uma forma de dizer “tens
tantos defeitos que não te aguento mais. Preciso de coisas diferentes. Tu estás
bem assim, nesse registo pão sem sal. Eu é que não estou para te aturar. Livra!”.
Já o “vais encontrar alguém que te mereça” é muito mais definitivo e de fácil
assimilação (como as papas para crianças).
Este Nestum das relações hodiernas,
pode, tal como a papa, ter upgrades.
E o “não és tu, sou eu” nesta versão moderna pode ser combinado. Um exemplo:
“Vais encontrar alguém que te mereça. És lindo e maravilhoso, tão inteligente.”
Só não pode ser exagerado, ou parece uma crise de auto-estima e não o término
de uma relação.
Se esta evolução resulta? Resulta
pois. Tenho mostras derivadas das minhas sessões de cusquice passiva, onde ouço
conversas sem querer. Numa esplanada, duas amigas a conversar: “E tu acreditas
que ele ainda me ligou?”. A amiga retorque, no tom de indignação feminino que
só uma amiga pode ter: “A sério? E o que te disse?”. O óbvio: “Que sabia que
não me merecia. Que eu era a pessoa mais fantástica que ele tinha conhecido,
mas que eu ia encontrar alguém que, de facto, me mereça.”. “E tu?”, prossegue a
amiga. “Eu? Disse que sabia tudo isso, e que era pena que não desse, e que ia
seguir com a minha vida”.
É a prova provada de que esta
técnica anda por aí a circular. Não tarda vai haver pins, bonés e t-shirts
alusivos. Tenho em crer que há bruxos que, em vez de receitar mezinhas e mortes
de galinhas pretas, escrevem somente num papel “vais encontrar alguém que te
mereça”, com a garantia de que, se o dizer à pessoa de quem se quer livrar de
forma convicta, ela vai mesmo deixa-lhe a sola.
Depois fica a certeza de que uma
relação morreu. Das cinzas nasceu um deus. E foram todos felizes, no final das
contas.
E será que vamos encontrar alguém
que nos mereça? Eu acho que sim, a não ser que nos queiramos livrar dessa
pessoa. E aí, como não merece a pena, também nós vamos vaticinar “vais
encontrar alguém que te mereça”, só que longe.
In "Más Línguas, boas conversas"
Jornal Terra Quente